terça-feira, 5 de março de 2013

Hugo Chávez


Hugo Chávez teve uma morte que ninguém merece. Venceu-o uma doença terrível que lhe causou enorme sofrimento.
Aquilo que Hugo Chávez significou para a história política da Venezuela e da "América Latina" não me interessa aqui enunciar ou discutir demoradamente. No entanto, e apesar das circunstâncias que o fizeram e de certa forma justificam, explicam, e que não podem nem devem ser esquecidas, parece-me óbvio que deixa, para juntar a anteriores, uma pesada herança aos venezuelanos. Ela é fruto do seu voluntarismo e de alguma generosidade, mas acima de tudo do populismo, da demagogia, do nacionalismo  e de uma espécie de marxismo hispano-tropical que o embriagou a ele e aos seus apoiantes dentro e fora da Venezuela. 
Mas do ponto de vista daquela que foi, ou é, a biografia política de Hugo Chávez, importa também destacar o facto de el comandante ter sobrevivido a tudo e a todos, nunca conhecendo qualquer derrota decisiva ou definitiva. Até hoje, embora esta forma de perder verdadeiramente não conte. Ou se calhar até conta. É que quer se queira, quer não, Hugo Chávez não morreu verdadeiramente. Hoje, 5 de Março de 2013, morreu Hugo Chávez. Mas neste mesmo dia nasceu um mártir a caminho de uma espécie de santidade, que serve aliás tanto a religiosos como a laicos. O seu fantasma vai andar por aí, ou por lá (na Venezuela e na América Latina), ao longo de muitas décadas. Com que fito? Logo se verá.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Os acontecimentos de ontem (14-11-2012)


Mais de 14 horas após os graves incidentes ocorridos ontem nas imediações da Assembleia da República, e cerca de 12 horas após o fim da Greve Geral convocada pela CGTP, mas a que aderiram muitos sindicados não filiados em qualquer central sindical e outros filiados na UGT, parece evidente que o principal beneficiado pelos acontecimentos foi o Governo. Não apenas pelo facto do uso da violência ter provocado natural e espontânea indignação junto de apoiantes incondicionais do Governo, mas também entre muitos para quem o Governo lhe era ou se tornara indiferente ou até provocava já cansaço senão mesmo repugnância. Ou seja, a violência usada por uma minoria com contornos e motivações políticas, sociais e ideológicas indeterminadas, funcionou como um “toca a reunir” entre alguns adversários compreensivos do Governo, mas, e sobretudo, entre apoiantes relutantes ou incondicionais da maioria e/ou nostálgicos do Portugal ordeiro supostamente existente entre 29 de Maio de 1926 e 24 de Abril de 1974. Os incidentes do fim da tarde de ontem foram pois uma causa mobilizadora, uma injecção de adrenalina e de legitimidade para um Governo e uma maioria cada vez mais acossados tanto a partir do interior dos partidos que o sustentam, como da sociedade que não entende e não aceita políticas que não apenas são contrárias ao prometido na campanha eleitoral de 2011, como não produzem quaisquer resultados esperados e abundantemente repetidos e prometidos (redução do défice orçamental, fim do crescimento da dívida pública, reforma do Estado, travagem do crescimento do desemprego e da recessão económica, uma nova postura ética por parte da classe política, combate à corrupção, fim da promiscuidade entre negócios privados e poder político, etc.).
O facto de o Governo ter para já beneficiado do rumo que tomaram os acontecimentos de ontem, leva-me a perguntar, no que à violência diz respeito e à crescente instabilidade política e social, de que lado está o Governo? O Governo quer evitar e, tanto quanto possível, parar a violência política e controlar a instabilidade social? Ou, pelo contrário, acredita que mais violência política e mais instabilidade social acabarão por beneficiá-lo a ele e aos seus propósitos? Digo isto porque, para além dos episódios de violência terem ontem dado nova força e legitimidade política e moral ao Governo, acabaram ainda, juntamente com a realização da própria greve geral, por fazer com que os portugueses esquecessem ou, provavelmente, nem sequer tivessem tomado conhecimento, dos dados que o INE divulgou sobre o agravamento da situação económica e social. De facto, foi justamente ontem que o INE, que depende do Governo (ao contrário do BP), nos recordou que o desemprego voltou a subir (está nos 15,8%) e o crescimento económico no 3.º trimestre de 2012 chegou aos 3,4% negativos. Alguém falou do assunto? Sim. Mas só durante escassas horas. Às oito na noite, nos telejornais, estas notícias mereceram pouco mais do que uma nota de rodapé. Aliás, já não é a primeira vez que o Governo tenta e consegue tapar más notícias sobre o orçamento, a economia e o desemprego com "incidentes" fora do comum. Há coincidências levadas da breca, sendo que no caso de ontem a violência de uns poucos e uma greve geral que os incondicionais do Governo ou/e inimigos figadais das desvalorizaram, acabaram afinal por esconder aquilo que é verdadeiramente importante e que o Governo não quer que se fale, nem quer falar (ontem os jornalistas perguntavam a Passos Coelho o que lhe parecia a carga policial em São Bento, mas esqueceram-se de o interrogar sobre os dados divulgados pelo INE). 
E de facto, enquanto a Greve Geral e, sobretudo, a violência nas ruas foram acontecimentos social, política e geograficamente muito localizados, o desemprego e a morte lenta da economia estão em cada canto do país e entram na casa de todos os portugueses onde há ou vai haver pelo menos um desempregado, uma pessoa com fome ou um salário parcialmente confiscado. 
Uma palavra final para aqueles que comparam a violência de ontem, e destes tempos conturbados que vivemos, com a violência do PREC e o papel que quo PCP nela desempenhou. É de facto um erro (involuntário?) pensar e dizer que a violência do PREC foi encomendada ou estimulada pelo CC do PCP. No entanto, e quando o PCP usou violência, fê-lo tanto para "bater" à sua direita como à sua esquerda. O PREC foi mais complicado do que às vezes parece. Por exemplo, vale a pena recordar que o PCP condenou sempre o terrorismo. Depois do 25 de Abril por razões óbvias. E antes só se meteu na chamada luta armada para não perder apoios e "legitimidade" numa oposição que a partir de meados da década de 1960 se tornou cada vez mais radical e complexa na luta contra o “fascismo”. Aliás, esta atitude nada tinha de original, filiando-se no pensamento e na acção da sua fonte inspiradora: o PC Soviético ou, antes, o Partido Bolchevique. Basta conhecer-lhe a história e a forma como sempre condenou, não a violência, o radicalismo e/ou o voluntarismo, mas a violência pela violência, o radicalismo pelo radicalismo e o voluntarismo pelo voluntarismo.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A Maratona


Aprovar um orçamento rectificativo para 2012 e o orçamento para 2013 ao fim de, segundo informam os jornais e demais meios de comunicação, uma maratona quase ininterrupta de 20 horas do Conselho de Ministros, revela impreparação, amadorismo e uma enorme irresponsabilidade. Parece uma daquelas maratonas a que muitos universitários, alunos ou docentes, às vezes sob o efeito de estimulantes pouco recomendáveis, se dedicam para terminar um trabalho final, um paper, um relatório, e sabe-se lá mais o quê. Ora  como concluir e aprovar dois orçamentos (embora um rectificativo) em Conselho de Ministros não é o mesmo que realizar umas quantas directas para acabar aquele trabalho na "cadeira" de Finanças Públicas ou um paper a apresentar num seminário ou numa conferência dedicada ao mesmo tema, é legítimo que se pergunte porque razão se trabalha desta forma tão atabalhoada nas "altas esferas do Estado"?! Uma maratona assim acontece em nome de quem, por ordem de quem e com que objectivo? Dá ideia de que o Governo trabalha muito? Provavelmente. Mas melhor seria que trabalhasse bem. No entanto, e para que isso sucedesse, os governantes que temos teriam que saber como é fazer bem e como é que se faz bem. Talvez um dia.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Previsões


Não simpatizo nem nunca simpatizei com Mário Soares. Tanto ou tão pouco que nunca lhe dei o meu voto. Mas sempre lhe reconheci grande intuição e conhecimento no que à politica e à politiquice diz respeito. Por isso, não só não desmereço como leio com atenção aquilo que escreveu hoje no DN sobre uma queda, para breve, do actual Governo. Só não sei se o antigo presidente da República não estará a ser demasiadamente optimista. Algo me diz que este Governo poderá não chegar à discussão do orçamento. Resta apenas saber se o próximo terá Passos Coelho como primeiro-ministro.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Salazar cai da cadeira, Marcelo senta-se.


Há uns anitos, a convite do António Paço, publiquei este texto numa colecção de livros/fascículos que se intitulava, salvo erro, os Anos de Salazar. Como hoje é 26 de Setembro, decidi pendurá-lo aqui. O título do post é o mesmo do original, mas a escolha não foi da minha responsabilidade. Fiz algumas correcções à forma do texto.

As origens do fim…
Ultrapassados os efeitos do assalto ao paquete Santa Maria no mês de Janeiro, derrotado o golpe Botelho Moniz em Abril, ganha a aposta militar feita em Angola contra a insurgência iniciada em Fevereiro-Março, amortecido o impacto da invasão do Estado Português da Índia em Dezembro e aplacada a hostilidade da diplomacia norte-americana ostensivamente manifestada desde Março com John F. Kennedy na presidência, Salazar e o salazarismo atravessaram chamuscados mas não vencidos o terrível ano de 1961. Até Setembro de 1968, quando se consumará a muito aguardada substituição de Oliveira Salazar na presidência do Conselho, o regime soube responder com êxito aos desafios que lhe foram sendo colocados e que resolve dentro dos parâmetros políticos que o definem.
Será bem sucedido no modo como enfrenta o alargamento da guerra às frentes da Guiné-Bissau e de Moçambique, nomeadamente ao manter equilibradas as finanças públicas. A economia crescerá a um ritmo muito elevado (em média 5,86% entre 1957 e 1963 e 6,7% entre 1963 e 1968), o mesmo acontecendo com os salários reais (4,7% em média entre 1957 e 1963 e 6,09% entre 1963 e 1968). A economia portuguesa abrir-se-á ao exterior, sendo a participação no projecto EFTA (1960) e a adesão ao GATT (1962) tanto causa como consequência dessa abertura. Por outro lado, o volume de população urbana e industrial irá crescer muito rapidamente, alterando a face do país. E se a emigração para a Europa mina, a prazo, a oferta de mão-de-obra, impondo um crescimento dos salários reais e da inflação, acaba também ela por exportar as tensões e as desigualdades sociais que certamente se agravariam caso aqueles que saíram tivessem permanecido no torrão natal ou nos maiores centros urbanos e industriais localizados no litoral. Finalmente, a emigração, o crescimento do turismo e do investimento estrangeiro permitirão que a balança de transacções correntes se torne excedentária à medida que a década de 1960 progride.
Paralelamente, e do ponto de vista estritamente político, o salazarismo conheceu mudanças substanciais entre 1961 e 1968. No entanto, tal não sucedeu por causa dos desafios lançados por um oposicionismo mais jovem, mais aguerrido e mais radicalizado, ou por uma reformulação ou reforço da oposição histórica de raiz “republicana” ou “monárquica”. A mudança também não decorreu do relativo isolamento internacional do regime e que era causado pelo esforço de preservação do império colonial ou pela sua natureza autoritária. As alterações não foram ainda o resultado de qualquer indisposição irreversível da instituição militar perante o regime, embora no seio desta se manifestassem sinais crescentes de perturbação por causa do arrastamento de uma guerra em três frentes. As mudanças produziram-se, fundamentalmente, em resposta à tensão existente no seio do regime entre as tendências, sensibilidades, facções e personalidades que o compunham, sendo que entre 1961 e 1968 a acção deste mosaico de tendências se intensificou nos bastidores dada a inevitabilidade da substituição de Salazar a curto ou médio prazo.
Recorde-se que, apesar da sua natureza autoritária, o salazarismo nunca foi política e ideologicamente homogéneo e, muito menos, um regime sem história. O salazarismo – ou o Estado Novo – foi uma federação de interesses e de facções das quais sobressaíram personalidades que tentaram alterar a natureza do regime ou o seu rumo, umas vezes com Salazar, outras contra ele, outras, ainda, sem ele. Independentemente de na década de 1930 homens como, por exemplo, Pedro Theotónio Pereira, por um lado, e Manuel Rodrigues, ou Duarte Pacheco, por outro, terem dado voz e corpo a duas sensibilidades político-ideológicas distintas e concorrentes no seio do Estado Novo (a primeira nacionalista e reaccionária, a segunda liberal e republicana), foi só com a remodelação governamental de 1947 que nasceram e se consolidaram, por vontade própria – embora se possa sustentar que foi Salazar quem fomentou a sua génese e afirmação –, uma ala mais conservadora e uma outra mais liberal que se perpetuaram até ao 25 de Abril de 1974. A primeira capitaneada pelo mais tarde general Santos Costa, a segunda por Marcello Caetano.
Se a remodelação governamental do Verão de 1958 pareceu apaziguar esta contenda com a saída do Governo daqueles dois homens, a verdade é que a “Abrilada” de 1961 mostrou que a conflitualidade política no seio do regime não só não tinha desaparecido, como naquela data a continuidade de Salazar à frente do Governo esteve claramente em risco. Tal sucedeu tanto por causa do movimento político-militar iniciado pelos liberais comandados por Botelho Moniz, como pela reacção dos ultras cujo principal operacional no terreno foi Kaúlza de Arriaga. Ou seja, na “Abrilada” como noutros momentos anteriores na história do Estado Novo, tanto coube a homens do regime, como a opositores deste, o desejo de levarem Salazar a afastar-se do exercício do poder, acabando Salazar por permanecer na presidência do Conselho em Abril de 1961 apenas por essa solução se apresentar aos ultras como um mal menor. Aliás, o desejo e a ambição de afastar Salazar, ou preparar a sua inevitável e imprescindível substituição, foram registados mais de duas décadas antes da exoneração de Salazar. De facto, em Junho de 1946, Costa Leite (Lumbralles) enviou ao chefe do Governo uma carta relatando uma conversa tida com Santos Costa e na qual a questão da substituição do presidente do Conselho foi inequivocamente levantada pelo interlocutor de Lumbralles quando sugeriu a criação, com um papel bem definido, do cargo de “vice-presidente do Conselho ou ministro sem pasta.”
Oliveira Salazar sempre teve uma perfeita consciência da fragilidade e do carácter transitório do seu poder. Justamente por isso, desde a Segunda Guerra Mundial, e em vários momentos, afirmou que se retiraria. No entanto, não só não o fez como recorrentemente evocava a inevitabilidade da sua retirada com o objectivo, aparentemente contraditório, de prolongar e consolidar a sua permanência na presidência do Conselho. E procedia deste modo por uma razão muito simples. Salazar percebeu que a iminência da sua saída o fortalecia e o tornava de certa forma politicamente valioso na preservação dos equilíbrios existentes no seio do regime que criara e consolidara. Isto sucedia porque cada vez que a possibilidade da sua saída parecia tornar-se mais verosímil, logo aumentava proporcionalmente a tensão e a vigilância entre as sensibilidades do regime. Nessas alturas, estas sensibilidades procuravam reforçar as suas posições com o intuito claro de poder vir a ser uma delas, ou um dos seus líderes, a receber do chefe de Estado a incumbência de ocupar a presidência do Conselho no momento em que a questão da sucessão efectivamente se colocasse. Ora era justamente o crescimento desta tensão e competição entre facções inteligentemente alimentada por Salazar, além da inépcia política daqueles que desejavam substituí-lo, que o acabava por tornar, de alguma maneira, imprescindível. Enquanto as facções do Estado Novo não encontrassem uma estratégia comum, negociada, para afastar Salazar e o substituir por uma personalidade que pudesse reconfortá-las politicamente, estavam reféns de Salazar.
Na fase final da sua governação (aquando das comemorações do 40.º aniversário do 28 de Maio de 1926), em período de crise política criada mais uma vez pela sucessão sempre adiada do presidente do Conselho e pela tensão crescente entre facções, Oliveira Salazar não resistiu, desta vez sarcasticamente, a referir-se à (im)possibilidade da sua saída do Governo e ao facto dessa certeza ser tanto o produto da sua vontade como da impotência política exibida durante décadas por parte daqueles que cobiçavam o seu lugar. Nesta ocasião (Maio de 1966) refugiou-se na questão ultramarina para justificar a sua permanência no Governo, afirmando no fim do discurso que:
“Neste lindo dia de Maio, na velha cidade de Braga e numa das salas do Palácio dos Arcebispos […] eis um belo momento para pôr ponto nos trinta e oito anos que levo feitos de amargurado Governo. Só não me permito a mim próprio nem o gesto nem o propósito, porque, no estado de desvairo em que se encontra o mundo, tal acto seria tido como seguro sinal de alteração da política seguida em defesa da integridade da pátria e arriscar-se-ia a prejudicar a situação definitivamente conquistada além-mar pelos muitos milhares de heróis anónimos que ali se batem. É então mais do que justo que os recordemos e saudemos aqui.”
Em Portugal Amordaçado, Mário Soares lembrou a importância real e simbólica desta passagem do discurso de Oliveira Salazar a que assistiu pela televisão, sublinhando que todo o seu significado se tornou por demais evidente num momento em que, por fatalidade biológica, a luta pela sucessão do presidente do Conselho atingia um ponto alto. Para Mário Soares foi verdadeiramente impressionante que Salazar tivesse feito uma pausa na sua alocução no momento em que afirmou ter o desejo de pôr um ponto final nos seus 38 anos no Governo (“eis um belo momento para pôr ponto nos trinta e oito anos que levo feitos de amargurado Governo”). Nessa altura, segundo Mário Soares, o ditador “lançou um olhar frio e dir-se-ia divertido pela pequena sala – um desses olhares oblíquos e implacáveis, por detrás dos óculos bifocais, encavalitados”, enquanto a “assistência de fiéis, apanhada de surpresa, reagiu contraditoriamente: houve vozes tímidas de protesto e aplausos dispersos e despropositados! Salazar, após ter medido, durante alguns segundos, a confusão geral, impôs silêncio e continuou, imperturbável” afirmando que afinal ficava. Como concluiu Mário Soares, o “encanto rompeu-se!”
Justamente o teor do discurso, o ritmo de Salazar na sua leitura e a reacção embaraçada e contraditória da audiência demonstravam aquela que se transformara desde 1961 na primeira questão política do Estado Novo: a sucessão de Salazar e a evolução do regime depois da saída deste. Ou seja, não eram apenas as oposições externas que combatiam Salazar e ansiavam pela sua partida. Dentro do regime, e embora doutra forma e com outras armas, combatia-se Salazar, o regime e ainda a forma de governo que este construíra à sua imagem e em função dos seus interesses políticos.
A última remodelação governamental consumada por Salazar e a crise política que a tornou inevitável ajudam-nos a perceber não apenas aquilo que politicamente era o Estado Novo, as suas tensões e as suas rivalidades, o choque de personalidades e de projectos, mas também permite que se procure interpretar aquilo que Salazar pretendeu executar politicamente com essa remodelação e aquilo que ela acabou por produzir, ou não tivesse Salazar sido substituído na presidência do Conselho pouco mais de um mês após a remodelação ter sido executada.

A Última Remodelação Governamental de Salazar…
No dia 19 de Agosto de 1968, consumou-se aquela que seria a última remodelação governamental com Oliveira Salazar na Presidência do Conselho. Esta remodelação é normalmente desvalorizada na história do salazarismo por dela ter saído um Governo com uma vida curta. De facto, em finais de Setembro, e na sequência da tomada de posse de Marcello Caetano como novo presidente do Conselho, o derradeiro Governo escolhido por Salazar parecia pouco mais do que um equívoco histórico. E no entanto, merece que se olhe para ele com alguma atenção, perscrutando as suas origens, o significado da sua composição e aquilo que antecipava e porquê.
A última grande remodelação governamental anterior à de Agosto de 1968, ocorrera em Abril de 1961, na sequência do fracasso do chamado “golpe Botelho Moniz”. Fez-se numa conjuntura de profunda crise política iniciada com o assalto ao Santa Maria (Fevereiro) e agravada pelo início da guerra em Angola (Março), a que sucedeu o citado golpe Botelho Moniz. Salazar assumiu então interinamente a pasta da Defesa (de 13-4-1961 a 4-12-1962), afastando Botelho Moniz (também foram exonerados a 13 de Abril os ministros do Exército e do Ultramar, passando Adriano Moreira a ser o titular desta pasta). Substituiu-se ainda Marcello Mathias por Franco Nogueira nos Negócios Estrangeiros e Arnaldo Schultz por Santos Júnior no Ministério do Interior (isto já a 4 de Maio). É verdade que entre a Primavera de 1961 e Agosto de 1968, nomeadamente nas mini-remodelações de 1961, 1962 (a maior das quatro), 1963 e 1965,  vários ministros saíram do Governo e outros trocaram de pastas. Por exemplo, Salazar abandonou a Defesa, Adriano Moreira o Ultramar (Dezembro de 1962), Antunes Varela a Justiça (onde permanecia desde 1954 até 1967), Theotónio Pereira a Presidência (Junho de 1961), Pinto Barbosa as Finanças, Teixeira Pinto a Economia e Arantes e Oliveira as Obras Públicas (que ocupou entre Abril de 1954 e Abril de 1967). Quase todas estas mudanças tiveram um significado político e eram o sinal de crises sectoriais ou gerais com reflexos no equilíbrio do regime e nos apoios que lhe eram proporcionados pelas suas várias sensibilidades e individualidades.
A remodelação de 1968 teve um parto difícil e, como outras, Salazar adiou-a o mais que pôde. No entanto, foi mais profunda e teve um maior significado político geral do que todas as ocorridas depois de 1961. Isto é tanto mais verdade se se tiver em conta que não foi imposta por uma crise política óbvia como foram aquelas que ocorreram em 1944, 1947, 1958 e 1961. Sabe-se que era esperada e até reivindicada por vários sectores do regime desde Janeiro de 1967, mas só se tornou possível e inevitável depois de, a 10 de Julho de 1968, o Conselho de Ministros ter aprovado a construção da muito polémica barragem de Cabora-Bassa em Moçambique. Luís Supico Pinto, o principal conselheiro político de Salazar, foi um dos arquitectos das mudanças operadas em 1968, tendo-se reunido quase diariamente com o chefe do Governo durante os meses de Julho e Agosto. Igualmente importante nesta remodelação foi o facto de Mário de Figueiredo e Soares da Fonseca, íntimos conselheiros políticos de Salazar e pertencentes à chamada ala ultra do regime, não terem sido ouvidos.
A vontade do presidente do Conselho e o ascendente de Luís Supico Pico, fizeram com que o Governo empossado a 19 de Agosto (já depois da queda de Salazar no Forte do Estoril) significasse uma clara abertura à ala marcelista do Estado Novo. Ou seja, Salazar levou ao presidente da República um Governo que, olhando ao perfil político da maioria dos seus membros, poderia ter sido designado por Marcello Caetano. As escolhas de Salazar penalizavam tanto os ultras e beneficiavam de tal forma os liberais, num contexto em que a idade de Salazar fazia adivinhar que este seria o último Governo por si escolhido, que Américo Thomaz manifestou o seu desgosto em relação a algumas escolhas, o mesmo sucedendo com Mário de Figueiredo e Soares da Fonseca. No entanto, a Américo Thomaz não lhe desagradava apenas a clara cedência de Salazar aos marcelistas. Também as mexidas nas pastas militares, cujas mudanças penalizavam oficiais da confiança do presidente a República, lhe mereciam reparo e incómodo. E tanto assim foi que as relações entre Américo Thomaz e Salazar se degradaram parecendo repetirem-se os desentendimentos entre os dois homens que, em 1958 e 1959, tinham marcado os primeiros anos do primeiro mandato do presidente da República.
Vista a génese e a composição do novo Governo, não é claro se Salazar ao escolhê-lo se rendeu – talvez apenas transitoriamente – ao partido liberal, ou se se limitou a fazer uma remodelação inevitável no seu significado político, dispondo-se a pagar politicamente o preço do recrutamento da maior parte dos seus novos membros junto do sector do regime com mais e melhores quadros políticos e técnicos e que, como que por ironia, era liberal e “marcelista”. Aliás, pode-se até argumentar que sabendo Salazar que só poderia remodelar o Governo nele incorporando marcelistas, adiou a dita remodelação o mais que pôde, nomeadamente por saber que os marcelistas – e o próprio Marcello Caetano – se opunham à construção da barragem de Cabora-Bassa.
Mas sendo o último Governo de Oliveira Salazar um Executivo marcelista, pode-se também perguntar qual teria sido o destino do Governo, dos ministros e do próprio presidente do Conselho caso este tivesse permanecido no seu posto durante mais um, dois ou três anos. Não houvesse Salazar sucumbido à doença, a sua acção poderia ter passado por tentar condicionar e, depois, por procurar derrotar os intuitos liberalizadores daqueles que designara. Controlá-los-ia no Governo como fizera com Marcello Caetano e outros “jovens liberais” nas remodelações de 1944 e 1955. Uma outra possibilidade passaria por Salazar aceitar uma derrota política definitiva às mãos dos liberais no que respeitava a todas as pastas técnicas ou de política interna, a troco da manutenção e consolidação da sua tutela sobre o Ultramar, a Defesa e os Negócios Estrangeiros, ou seja, sobre todas os ministros e ministérios que mais directamente interferiam com a políticas ultramarina e de defesa escolhidas em 1961. 
Mas no fundo o que conta é o facto de que tendo Marcello Caetano acabado por suceder a Salazar na presidência do Conselho, herdou um Governo que, na grande maioria dos ministros, e como já se disse, poderia por si ter sido escolhido. Ou seja, o último Executivo da responsabilidade de Salazar era já o primeiro Governo de Marcello Caetano e a primeira de várias derrotas políticas que os ultras averbariam até Abril de 1974.
Mas para que melhor se perceba a aparente excentricidade nas escolhas ou o adiamento permanente na decisão de remodelar, convém recordar que as qualidades intelectuais de Oliveira Salazar e o estado da sua saúde se foram degradando significativamente ao menos desde 1966. Testemunhos como os de Costa Brochado nas suas Memórias ou de Franco Nogueira em O Último Combate e em Um Político Confessa-se, dão notícia disso mesmo, sendo o primeiro mais peremptório quanto à gravidade da degradação do estado de saúde de Salazar. Por outro lado, e embora as consequências da queda de 3 de Agosto de 1968 só se tenham verificado mais de um mês depois, também se sabe que os primeiros sintomas de uma diminuição das suas capacidades físicas e intelectuais se poderão ter verificado ainda antes de consumada a remodelação. Isto quer então dizer que como em nenhuma outra recomposição ministerial pós 1933, incluindo a do Verão de 1958, terá tido Salazar uma influência tão reduzida, embora neste caso por motivos não políticos. No entanto, também convém notar que tendo sido Luís Supico Pinto o braço direito de Salazar na remodelação de Agosto de 1968, não é crível que a aposta nos liberais não tenha partido do presidente do Conselho. Isto porque, e como se verá na escolha do sucessor de Salazar, Supico Pinto esteve longe de ser um dos mais entusiastas apoiantes de Marcello Caetano na ascensão deste à chefia do Governo. Nessa altura, foram marcelistas indiscutíveis como Moreira Baptista e Duarte Amaral que aconselharam Américo Thomaz quanto à personagem a escolher para substituir Salazar.
Em resumo, tudo indica que Salazar optou por trabalhar com Supico Pinto, e não com Soares da Fonseca ou Mário de Figueiredo, ao mesmo tempo que ignorava as pretensões de Américo Thomaz, não por ter perdido lucidez política, mas pelo simples facto de que eram as escolhas feitas para o novo Governo aquelas que correspondiam às suas expectativas e interesses, fossem quais fossem umas e outros.

A Sucessão…
Apesar de ter sido seriamente ponderada por Américo Thomaz, e apoiada por alguns membros do Conselho de Estado, a continuação de Salazar à frente do Governo mesmo depois de ter sido dado como incapacitado, a verdade é que se concluiu que, politicamente, aquela não era uma opção válida. Se a sucessão tinha que se fazer, e independentemente da última palavra, segundo a Constituição, quanto à exoneração e indigitação de um novo presidente do Conselho, pertencer ao chefe do Estado, a verdade é que este tinha que se aconselhar para poder escolher. Aconselhou-se e escutou chefes militares, conselheiros pessoais, notáveis do regime, conselheiros de Estado. Porém, uma coisa é certa. Desde muito cedo, e vista a indisponibilidade, por motivos de saúde muito graves, de Theotónio Pereira poder suceder a Salazar, Marcello Caetano era a individualidade do regime com maior possibilidade de poder vir a ocupar o lugar que Salazar deixava vago. É verdade que Antunes Varela estava teoricamente na corrida. Era inteligente, tinha larga experiência governativa e era suficientemente conservador para dar garantias de que a mudança de chefe de Governo e uma inevitável evolução do regime não conduziria à sua descaracterização. No entanto, não reunia apoios suficientes dentro do regime, ligara-se, segundo alguns, ao mundo dos negócios, e é até possível que não quisesse assumir uma responsabilidade tão pesada. Outra hipótese era Franco Nogueira que, talvez, e dado o protagonismo que assumira durante mais de sete anos no cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros e uma certa intimidade política e pessoal que lhe advinha do convívio com Salazar, pudesse pensar que poderia ser o escolhido. Ainda assim, porque era novo, porque vinha de fora do regime e porque não criara apoios políticos sérios e estáveis no seio daquele, não poderia suceder a Salazar. A este facto juntava-se um argumento de peso, apesar de falacioso. Permanecendo nos Negócios Estrangeiros, como lhe foi exigido, Franco Nogueira dava garantias de que a política externa e a diplomacia de Portugal continuariam a manter um rumo apesar de tudo relativamente bem sucedido num ambiente internacional hostil. Passasse Franco Nogueira para a presidência do Conselho e talvez, como se dizia, se ganhasse um bom primeiro-ministro, mas perdia-se certamente um excelente ministro dos Negócios Estrangeiros. Havia depois, e por fim, a hipótese Adriano Moreira. Era o mais jovem de todos, professor universitário como Marcello Caetano, adversário deste por razões espúrias e que, por isso, o tornavam numa má solução se se pretendesse escolher um sucessor de Salazar que fosse capaz de unir o regime num momento de profunda crise. Com ele à frente do Governo seria quase impossível que os marcelistas continuassem a colaborar com a situação. Por outro lado, Adriano Moreira saíra do Ministério do Ultramar em 1962 como resultado de uma forte pressão exercida por sectores civis e militares contra as suas políticas e a sua pessoa. Finalmente, e tal como Antunes Varela ou Franco Nogueira, de quem também era inimigo político e mantinha inimizades pessoais, Adriano Moreira não construíra uma facção no seio do regime, nem tinha onde ir recrutar gente para formar um novo Governo e com ela tomar conta de boa parte das instituições vitais do regime.
Como Luís Supico Pinto, por razões nunca reveladas, se colocou fora da sucessão de Salazar, restava Marcello Caetano. Este, embora sempre tenha negado ambicionar vir a ocupar o lugar de Salazar (disse-o várias vezes antes e depois de 1968), não só estava disponível e com vontade, como reunia em torno de si inúmeros e importantes apoios provenientes de diversos sectores do regime que, por isso, tornavam a sua escolha quase inevitável. Como se não bastasse, há quem garanta (Manuel Maria Múrias) que, na sua casa no Linhó e no seu escritório na avenida António Augusto Aguiar, Marcello Caetano não fez outra coisa a partir do início de Setembro que não fosse discutir a sucessão de Salazar e manobrar e fazer manobrar os seus partidários no sentido tornarem o veredicto do presidente da República, no momento da sucessão, favorável à sua pessoa. Mas comportava-se como se fosse o único que não acreditava que iria ser o escolhido. Como parte das suas manobras, a 16 de Setembro, depois de na véspera Salazar ter tido uma recaída que afastava qualquer possibilidade de poder vir a recuperar e tornar a ser politicamente activo, Marcello Caetano apareceu pela primeira vez no Hospital da Cruz Vermelha em Benfica. A 17 realizou-se a primeira reunião do Conselho de Estado para avaliar a situação e acertar uma decisão. Foi aqui que todos os conselheiros, com excepção do marcelista Albino dos Reis, aceitaram como boa – em silêncio ou de viva voz – a possibilidade de Salazar continuar titular da presidência do Conselho e de alguém o poder substituir apenas interinamente. Porém, Américo Thomaz mudou de ideias e decidiu avançar para a tomada de uma decisão – a substituição de Salazar – com a qual, mais cedo do que tarde, teria que se confrontar e que andava no ar há já alguns anos. Começou então a ouvir gente do regime em audiências que duraram uma semana. Um por um escutou todos os conselheiros de Estado, chanceleres das ordens civis e militares, juizes, chefes militares, personalidades mais destacadas com assento na Assembleia Nacional e na Câmara Corporativa, antigos ministros, amigos, gente dos negócios, gente ligada à Igreja católica, burocratas. Nesta altura, o resultado parecia ser apenas um: “Cada cabeça sua sentença.”
Perante a inevitabilidade da sucessão, tudo indica que Soares da Fonseca começou a conspirar com dois objectivos: impedir que o sucessor fosse Marcello Caetano e encontrar alguém suficientemente credível e consensual junto dos ultras e outros não marcelistas para contrapor ao candidato mais forte. Certo é que nada conseguiu. Marcello e os marcelistas mexiam-se mais e melhor. Além de muitos dos seus estarem já no Governo, Marcello Caetano tinha prestígio dentro e fora do Governo e do regime. Era, muito justamente, uma esperança de mudança no sentido da abertura e liberalização do regime e, até, da introdução de modificações na política ultramarina, o que significa que havia um sentimento geral no país que favorecia a nomeação de um sucessor que não fosse um segundo Salazar. A tudo isto juntava-se o facto dos seus partidários na agência noticiosa do regime – Dutra Faria e Barradas de Oliveira, por exemplo – ou fora dela – como Moreira Baptista – terem lançado uma campanha junto de órgãos de informação estrangeiros com o objectivo de apresentarem Marcello Caetano como a escolha de que o país necessitava e clamava, ao mesmo tempo que mostravam a notáveis do regime os telegramas dos media estrangeiros em que se apresentava como inevitável a hipótese Marcello como uma solução que satisfaria terceiros países amigos de Portugal.
Nas vésperas da escolha de Marcello, e quando esta parecia inevitável, um grupo de antimarcelistas “plebeus” tentou pressionar Américo Thomaz mas não foi recebido. Ainda assim o grupo falou com Correia de Oliveira e com Mário de Figueiredo já muito doente, na esperança de que estes conseguissem poder vir a influenciar a escolha do presidente da República. Mário de Figueiredo, depois de escutar quase sem interromper os seus interlocutores, afirmou com enorme lucidez que os antimarcelistas reunidos à sua frente, como ele próprio, estavam “degraçados”. O grupo dirigiu-se depois a Soares da Fonseca. Para este o sucessor de Salazar deveria ser alguém discreto e “cinzento” e, claro, nunca Marcello Caetano. Soares da Fonseca confiava que não só Thomaz nunca escolheria Caetano, como as próprias chefias militares o vetariam, nomeadamente por causa do seu memorial sobre a política ultramarina do regime redigido em 1962 e onde criticava a estratégia colonial de Salazar ao propor uma solução federal como saída para o problema. Mas a verdade é que Soares da Fonseca e os ultras se encontravam paralisados pela prosaica razão de não possuírem qualquer alternativa forte e credível. Américo Thomaz percebeu esta fatalidade, muito reforçada pelas pressões e manobras exercidas pela corte marcelista com quem amiudadas vezes se aconselhava antes e depois da crise de sucessão de Salazar, e avançou para a única solução que tinha disponível. Optou por Marcello Caetano consciente dos riscos que a escolha comportava, nomeadamente na questão ultramarina. Daí que lhe tenha imposto duas condições na conversa definitiva que manteve com Marcello: a continuação de Franco Nogueira na pasta dos Negócios Estrangeiros e o prosseguimento da política ultramarina, recordando que caso o futuro presidente do Conselho tergiversasse nesta as Forças Armadas interviriam. Por último, é possível, mas não seguro, que Thomaz tivesse a convicção íntima de que o primeiro sucessor de Salazar se queimaria politicamente num espaço de tempo mais ou menos curto. E se assim era, melhor seria que fosse Marcello Caetano a vítima. O mandato de Caetano mostrou que de facto aqueles que sustentavam que o primeiro sucessor era para queimar tinham razão. O problema, na óptica do regime, foi que já não houve lugar à nomeação do sucessor de Marcello Caetano.